O homem de impecável fato azul, que passaremos a chamar Vladimiro Caposso, rodou cuidadosamente a chave na fechadura do apartamento, de modo a não fazer barulho. Mal abriu a porta, ouviu os gemidos de Maria Madalena, a grande cabra, e os urros de gozo do dito Toninho. Não precisava de mais para confirmar o que José Matias tinha declarado. Silenciosamente, avançou no apartamento até à porta do quarto que tão bem conhecia. Nem precisou entrar para assistir ao espectáculo dos corpos nus se movimentando freneticamente. Na rua acontecia uma passeata política, com muitos carros cheios de gente agitando bandeiras rubronegras, cartazes, jovens de camisolas vermelhas e punhos erguidos, gritando slogans e canções políticas. Faltava uma semana para as eleições. A essas passeatas de pessoas empoleiradas em carros, dezenas de carros embandeirados a buzinar e centenas de cidadãos a gritar, o povo no seu aprendizado da recém-chegada democracia chamava carreatas, pois as passeatas deviam ser nomeadas apenas no caso de manifestações a passo. Esta era talvez a maior concentração de veículos de sempre, na maior parte carros pertencentes ao património do Estado, buzinando estridulamente. Caposso apontou com frieza do lado de fora do quarto, retendo a respiração, como aprendera da arte de bem disparar. Esvaziou o carregador da pistola. Os tiros foram bastante abafados pelo barulho atroador da carreata. Entrou no quarto, empurrou com o cano da pistola o corpo do homem morto. Verificou que ela também estava morta, três buracos perto do coração. Nem souberam porquê morreram, foi pena, a cabra devia sofrer com o medo da morte, para perceber o que lhe acontecia, e perceber também os riscos incorridos ao gozar com ele. Mas seria perigoso chamar a atenção do par amoroso, olhar para eles olhos nos olhos, ver o medo crescer nos dela, as cenas habituais de ameaças, os gritos, as preces, as mentiras, as implorações, as últimas simulações do desespero, perda de tempo permitindo alguma coisa entretanto acontecer e estragar tudo, não, assim era melhor, uns tiros misturados ao barulho da rua e os pombinhos morreram na ignorância. Dava no mesmo. Não era por eles que fazia esta matança, era por si próprio. Saiu do quarto, guardou a arma, foi à mesa da sala onde sabia haver sempre marcadores e canetas. Com uma caneta de feltro vermelha, escreveu numa folha de papel em maiúsculas e com a mão esquerda « Ninguém trai a UNITA sem deixar a vida» . Atirou a folha de papel para cima dos corpos, bateu a porta sem a fechar à chave e foi embora. Nenhum vizinho se apercebeu, pelo menos o corredor estava vazio. À porta do prédio, na rua, as pessoas formavam um grupinho ainda a comentar política por causa da passeata,