Um som fluido abandonava a casa, roçava na poeira das trepadeiras no jardim, influenciava as mangas e os mamões no seu processo de maturação, arrepiava uma libélula inebriada que ali adormecera, fazia o sol abrandar e chegava, ainda forte, ainda nítido, ao ouvido da mulher. Depois disto, um sorriso. Na aparelhagem o som acontecia contínuo, ininterrupto. O doutor solidificara este hábito domingueiro: sentar-se no fresco da sua varanda ouvindo, durante extensos momentos, a voz de Adriana Calcanhotto. Ora dormitava, ora lia, ora escrevia, ora se quedava simplesmente de olhos rasgados contemplando as nuvens gordas azularem o céu. Para ele não se tratava de beatificar um domingo, mas sim a própria paz. Aliás, “domingo” era, para o doutor, uma palavra muito interna. Fosse um poço. Pressentindo isto — que o doutor se apresentava em pleno estado de domingo —, a mulher hesitou. Encostou a testa ao ferro do portão e quis acreditar no impossível: que não tinha sede. A testa latejava; os olhos se queriam, de fato, fechar, olvidar o mundo, cessar a prestação de serviços visuais. O frio do portão trouxe-lhe agrado aos dedos, ao coração também. A música invadia-lhe os poros. Então, aí sim, ela partilhou uma sensação com o doutor. Ele, no mesmo instante, pensava: esta voz pode ser dividida. A voz de Adriana, empurrando a tarde: “será que a gente é louca ou lúcida... quando quer que tudo vire música”. No intervalo de voz, a libélula decidiu acordar, mover-se em zum-zum aberto, e aterrizar junto aos apontamentos do doutor. Gatafunhos, memórias recusadas, esquebras de horas mais sensíveis que escusava aceitar como suas. “Eu perco o chão, eu não acho as palavras”, a voz cantava. Há anos que o doutor acertara as contas com os animais e se apaziguara numa relação equilibrada com eles. Mantinha uma relação ainda conflituosa com as baratas e os sardões, mas já não era homem para matar. Em vez disso, usava sorrir.